segunda-feira, 24 de agosto de 2009

What a Wonderful World

A Casa da Tia Idalina

Daí que a Idalina, a irmã da minha avó, resolveu comprar uma casa no morro. Morro de Santa Teresa. Acho que alguém, ou todo mundo, deve ter argumentado, tentando fazê-la mudar de opinião, afinal, embora logo ali, a apenas algumas quadras da casa de meus avós, o morro era perigoso. Havia poucas casas, quase que pura mata, muitas malocas – a maioria dos moradores eram os pobres, os negros, naquele tempo.
E se o canto dos pássaros hoje, ainda, é um desbunde, imagine então. Aliás, não raro fico imaginando como seria ouvir a Amazônia original, quase insuportável...
Na casa moraram, num primeiro momento, ela e sua neta mais moça. A filha viajava bastante com o marido, embora de vez em quando chegassem a passar um bom tempo lá. Quando estava o casal, era tudo diferente, outro clima. Nos domingos, a casa abria-se para amigos e parentes, entre eles, meu pai e minha mãe. Muito samba, muita cachacinha, muito papo interessante, uma coisa que parecia ser até comum na época. Fazia calor, e a vida, exceto por aquela vez em que por acaso descobri a existência das urtigas, era pura alegria. Muitas piadas, muita política. E comida de primeira.

As outras lembranças fortes da casa eram, ao contrário, as das frias noites de inverno, quando eu e a Bete lá dormíamos. Nas ruas, não mais que fracas e amareladas lâmpadas, que tremulavam, insinuando possibilidades de brilhos de punhais e de assassinos à espreita.
Era logo ali, mas a sensação era a de viagem, pelo interior ou pelas florestas de algum conto de fadas.
Um vento sempre presente circundava a casa e gemia, envolvendo-a em fios de prata e medo. E a Idalina, fixando aterrorizados olhos de criança em algo além das vidraças, ordenava, num quase sussurro: Olha! Escuta! Com tal aflição e espanto, que a nossa impiedosa imaginação, acatando-a, fazia crescer do lado de fora enormes mãos esquálidas e famintas, corpos e cabeças que se metamorfoseavam, ora nos ameaçando, ora tentando nos puxar e levar sabe-se lá para onde...
E, se por um lado quase tentadas abríamos a porta, no talvez derradeiro vale-tudo com o que estivesse espreitando, por outro, o medo de que tudo-aquilo-fosse-mesmo-apenas-a-nossa-imaginação nos congelava. E tomávamos a decisão mais sábia, a de nos enfiar pelas cobertas, aos gritos e quase risos, tremendo de medo, de todo medo que sabíamos fingir.

Acordávamos com um ventinho frio e amigo, que nos convidava para um dia de aventuras. Na cozinha, a Idalina já nos esperando com o café ou chocolate (eu admirava as casas em que os adultos davam às crianças a opção do chocolate, coisa meio rara ainda na época), e com outras gostosuras: pães de trigo ou de milho feitos em casa, umas ou duas qualidades de chimia, também feitas em casa, ou um doce de leite vindo do Uruguai. Às vezes, um queijinho especial da colônia, ou bolinhos. Na porta da cozinha, que dava para o pátio, outro vento, agora frio e seco, sério e respeitável, garantia de que a manhã seria cheia e que estávamos em segurança, longe das loucuras da noite. Lembro que, num costume que tenho até hoje, parava por ali um momento para tomar sol. Sol e vento fresco do morro na cara. Que delícia!
O pátio era descomunalmente gigantesco, tinha até uma sanga. Cana de açúcar e pé de milho. Gatos, cachorros, galinhas e até um porco. Além de algum agregado, um ex-morador de rua, meio ex meio ainda pau dágua, que por ali ia ficando e fazendo pequenos serviços.
Depois de uma não muita longa exploração nos fundos do terreno, voltávamos e ficávamos ali orbitando a casa e a Idalina, que parecia um sol.

A Dindinha, como era chamada, havia sido professora e, segundo histórias familiares, teria, pessoalmente, e a lombo de burro, levado as tábuas e construído a sua escola. Como a minha avó, filha de alemão, de Berlim, homem culto, ou apenas o normal praquelas bandas, que havia proporcionado a melhor educação para suas filhas. Ambas falavam um português corretíssimo, com pronomes oblíquos e todos os erres e esses possíveis.
Ela era tão popular naquela região de Estrela, Lajeado, Arroio dos Ratos e São Jerônimo que, nas vezes em que a acompanhamos em pequenas viagens, pudemos constatar sua popularidade na quantidade de pessoas que nos ofereciam suas casas, traziam presentes ou nos convidavam para um lanche. Ela era madrinha de tanta gente que me lembrava, de alguma forma, o Brizola, que também era outro muito bem recebido pelo povo.
A Idalina, que com o casamento passou a ter o sobrenome de Pinto Bandeira, era, pessoalmente, heroína de muitas histórias engraçadas e maravilhosas. Quando o Prestes passou com a sua Coluna pela cidade onde morava, ela adorou a idéia do comunismo e por conta disso subiu no palanque a fazer discursos. O que a levou a passar alguns dias na prisão local... Fico pensando na terrível crise de consciência pela qual deve ter passado o delegado que a prendeu, quem sabe seu compadre...

Quando ela andava pelas ruas, demorava muito para chegar ao destino, se é que tinha mesmo algum. Para mim, ela, já muito antes de alguém sonhar com a tal Era de Aquário, seguia alguma filosofia oriental que diz que “o caminho é enquanto” ou algo assim. Pois ia parando em cada casa na qual vislumbrasse uma folhagem ou alguma flor bonita, até que alguém viesse se apresentar. Animais então, nas casas ou na rua, eram sempre parados e afagados. Anos depois, dava o mesmo tratamento aos nossos namorados, beijando-lhes a face, por muitos minutos, em beijos estralados e com muito estardalhaço. No início, ficávamos com um pouco de vergonha, depois, como não houvesse queixa, e aquilo fizesse com que os rapazes logo abrissem seu coração e mostrassem um insuspeitado lado sensível, e risonho, assistíamos de camarote, nos divertindo muito. A impressão que eu tinha é que se houvesse alguém muito mau, por pior que fosse, um terrível facínora mesmo, naqueles braços e naqueles beijos, se converteria.

Era uma contadora de histórias nata, daquelas que acredita na própria história, uma loroteira de primeira, legítima e da melhor qualidade.

Por acaso, hoje seria o aniversário da Idalina.

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