domingo, 25 de julho de 2010

Beat Me Daddy, Eight to the Bar

Bonecas de Papel

Acho que se me perguntassem qual o grande brinquedo da minha vida, iria vacilar entre brincar de palco, dançar, fazer shows, teatro e... as bonecas de papel. Tinha o brincar de mocinho, tinha as rodas, que adorava, tinha até caleidoscópio. Tinha tanta coisa linda!... Brinquedos de médico (não aquele), dentista, cirquinho, mágico!... Sem contar os inusitados, que apareciam com aquele tio aviador que trazia coisas inimagináveis dos Estados Unidos! Ainda tinha o de índio, quando chegava a data. Olha só: na escola, sempre, todos os anos, a coisa começando meio que uma semana antes do Dia do Índio, a gente tinha que sair a catar tudo o que pudesse e tivesse a ver com a vida numa tribo. Como sementes de cinamomo, que subíamos nas árvores para pegar, secar e transformar em colares e pulseiras. As galinhas, pobres, a gurizada já começava a olhar para elas com cara de vou pegar essas penas. Mas eu, particularmente, achava uma pobreza fazer cocares ou tiaras de simples penas de galinha. Achava que a gente tinha que conseguí-las de seres mais nobres, tipo algum pavão. Ou melhor, do tipo artificial e lindo, comprado de preferência em alguma loja. Não posso negar que a boa vontade era enorme, ao contrário do conhecimento. Os índios estavam muito mais para aqueles que apareciam nos filmes de cowboy do que para legítimos selvícolas regionais. As professoras, mais preocupadas com que conseguíssemos aprender o que de fato interessava, como os nomes dos grupos: tabajaras, tupis, guaranis, entre outros, e sua localização geográfica, deixavam passar esse pequeno lapso. Contas recém pintadas secando, começava outra parte: a montagem de verdadeiras tabas, mini tabas, pela casa. Agora, em vez das tradicionais casas de bonecas, nossa dedicação voltava-se à criação e curtição de ocas, árvores, redes, cenários nos quais situações pudessem ser vividas, montes, florestas, incluindo até pirogas em beiras de rios de espelhos (knowhow que vinha do presépio natalino e sempre me encantara sobremaneira), e desse modo brincávamos por pelo menos uma semana. Gostávamos de montar nossas construções na sala do apartamento da Bete, embaixo do piano ou da mesa.

Era tudo maravilhoso, mas... a boneca de papel, um caso à parte. Havia uma coleção, a minha preferida, na qual cada boneca vinha com um enorme álbum. Quase do tamanho de um livro, e com muitas roupas e acessórios para a boneca poder viver muitas cenas cotidianas. Um sem número de trajes de passeios, uniformes, roupinhas de pescaria, tênis, praia, festas, e tudo com o glamour dos anos quarenta e cinquenta. Bonecas meninas e bonecas adolescentes, e até um bebê, a Cristina, me lembro, que vinha com tudo o que um bebê precisa (na corte da Sissi...). As bonecas vinham ainda com seus brinquedos, cachorros, casinhas de bonecas e livros. E a perfeição maior residia no fato das roupas e acessórios não serem desenhados, e sim fotografados. Como um figurino que aparece numa revista Vogue, por exemplo, como se a gente o pudesse recortar.
Essa coleção tinha umas vinte bonecas, e para conseguir grana para cada álbum, a gente suava. De vez em quando, minha avó, apiedada de mim, dava um jeito de conseguir o dinheiro que faltava para algum, principalmente quando eu já estava quase no finzinho de completar a coleção, refeita a cada seis meses em média, já que papel... bem, não era incomum que, num descuido qualquer, e sem nenhum motivo político, alguma fosse decapitada.
E porque as bonecas eram pequenas, podíamos pegar revistas de decoração e fazer, daquelas salas, quartos e cozinhas, as casa das meninas. A minha avó recebia revistas americanas e alemãs, com propagandas de jóias, fotos de beldades do cinema, cadillacs e novidades, que iam direto para o universo das bonecas de papel.

Certa vez, ganhei de aniversário duas enormes bonecas de papel. Vinham em enormes caixas e tinham imã... que as prendia às roupas, as quais já vinham recortadas. Diferente da outra coleção, que a gente tinha que recortar roupinha por roupinha, e até a boneca. O que garantia uma graça toda especial, pois parecia que a gente estava dando vida à cada coisa daquelas.
Até hoje, antes de sair para uma balada, gosto de montar a personagem com o seu figurino. E, principalmente, as bonecas me fizeram, talvez pela primeira vez, reparar nos arquétipos, nas peculiaridades de cada uma e nas diferenças entre elas. Hoje, com o conhecimento que tenho, posso dizer que cada uma remetia a uma deusa, fazendo com que, de quebra, eu percebesse semelhanças com o meu próprio eu, desse modo me conhecendo melhor, entendendo minhas escolhas, meu mundo, meu caminho. A personalidade da boneca determinava se ela seria do tipo que dá mais valor à leitura ou uma amazona, se gosta mais de sol ou da noite.
Eu brinquei de boneca de papel até quase os meus doze anos. Aguentando paciente, embora um tanto desconfortavelmente, as críticas da Bete, que já se achando uma mocinha, mesmo apenas um ano mais velha, e se exibindo com seu primeiro sutiã, me tinha como ridícula e retardada, quase um caso perdido. Ia a festas e já ensaiava uns namoricos. E eu, embora incomodada, seguia o meu destino. Achava que a minha fase da infância ainda tinha o que render, e as bonecas eram irresistíveis.

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