domingo, 23 de setembro de 2012



  
 Singin' in the rain

 Euterpe e Melpômene


  
      Não sei se foi a memória, indo fundo em seu prodígio, uma brincadeira tipo eu x computador pra ver quem é que armazena mais, se foi a dor de uma perda, de uma meia, quase, para ser sincera, ou até a imaginação que anda de braços com a carência, às vezes. Pode até ter sido o inverno. Não duvido nada deste senhor. Aliás, eu tenho até uma tese de que o ar atmosférico, ou o clima do dia, nos traz à memória justamente coisas que se passaram em dias muito semelhantes. Pelo menos comigo é assim. Conforme sinto o clima do dia, temperatura, quantidade de luz, vento e sabe-se lá o que mais, me transporto àquele dia ou dias parecidos. E tenho que lutar durante o dia para que aquelas lembranças não se tornem mais nítidas, me atrapalhando o presente. Talvez no reverso desse verso, a tal da memória tenha feito o caminho oposto. Foi lá buscar, também pode. Vai saber dessas coisas de memória.

   Mas seja lá como e porque, estava eu deitada em minha cama, divagando no frio, antes de decolar para os ares de Morfeu, quando me veio uma tarde de verão em que estava com meu pai à frente de um clube – uma casa, tipo mansão, muito chique, com todo tipo de arabescos, redondos, musas, tipo aquelas casas de gente mui, mui rica que ficavam na avenida Getúlio Vargas, no Menino Deus, mas que poderiam ter estado na Paulista, ou na Old New York pras bandas da Washington Square. Era um distinto clube, a breguice ainda não tinha nascido, ou pelo menos conhecia o seu lugar, que certamente não era lá.
   Como uma câmera que vai se aproximando, a primeira cena que vi, como disse, era meu pai, de fatiota clara, daquelas que gringos com noção vestiam em visita ao Brasil. Eu era uma garota sapeca que ficava pulando daqui pra lá, enquanto conversava com ele. Altos papos, que sempre foram a marca registrada dos relacionamentos entre nós, a família de antes e a de agora. Adultos conversavam com crianças de igual pra igual, talvez porque os adultos nesse caso fossem umas boas crianças. A câmera avança e entendo que este é um dia de festa. Era uma formatura de alunos da escola de Música da minha mãe. Era o tempo da gaita, e dos vestidos longos, uma aluna mais linda que a outra, como princesas ou aquelas fadas-ninfas dos livros que meu pai me dava. A minha mãe usava um vestido rosa, de um tecido diáfano e um chapéu, de um tule com rosas, pois, como era a professora, achava que seu vestido tinha que ser mais discreto e o chapéu devia ser pela mesma razão. Lembro de uma guria, a que achei a mais linda, que tinha os ombros descobertos (talvez venha daí a minha fixação eterna em tomaras que caia), cujo vestido era uma mistura de azuis, rosas e roxos que iam se alternando. E ela tinha um sinal na “saboneteira”. E até um nome encantado, como Aretusa.
    Fiquei pensando no que é que meu pai estaria fazendo ali na frente naquela hora. Talvez recebendo os convidados, talvez uma pausa para um cigarrinho.
    Havia alunos de gaita e de piano, e lembrei que a paraninfa, para-ninfa, que não era bem isso, mas ficou assim na minha cabeça, a moça que faria o discurso dos alunos, estava toda de branco, inclusive com luvas, e algum brilho que não recordo aonde. Ela, talvez tenha sido a para-ninfa pois se formaria em piano e acordeon. E tocava piano lindamente, acho que era bem adiantada.

    Tentei ver, entre os convidados, os parentes, o público, quem de meus tios estaria lá. Não lembro de ter visto meus avós, não sei se a doença de meu avô se deu antes ou depois. Lembro alguns rostos sorridentes, talvez de minhas tias e tios, também não lembro da Bete correndo entre os corredores, devia estar em Ipanema. Com essa reconstituição fui refazendo a história da família. Quem já teria se casado, enfim.

     Em meio de todo mundo, lembrei de Luiz Carlos, um rapaz negro que se formava em acordeon e cuja mãe, seria Marina?, tinha o mais belo jardim de dálias de todas as cores, mas principalmente as fúcsias, e fazia o melhor, o supremo bolo de doce de leite com amendoim da minha vida. Um tempo em que as casinhas do Menino Deus eram de madeira, com alpendres, camélias, cachorros, crianças fazendo roda.

    Os meninos, em minoria, posavam para as fotos do lado externo das mesmas. E se não fosse a foto eu não teria me lembrado de tudo isso, acho, pois a foto perdurou no álbum, reforçando as imagens. Aonde andará essa foto?

     Havia a Dona Nilda. Grande professora de piano, e coitadinha, acho que era meio parecida com a Maricota dos quadrinhos. Na minha família, uma coisa que não era perdoada era a feiúra, eram todos muito bonitos. São... basta olhar pros dois bestas que eu tenho.
        A Dona Nilda, além de ser meio feia, era, segundo alguns, antipática. Já vejo minha mãe dizendo: credo, tão querida que ela é. E chata, pois logo ganhou o apelido de... chatonilda. Um pecado. Quando ela aparecia, e segundo os adultos nunca ia embora, já era praxe a Emília ou meu pai irem discretamente até a cozinha e pôrem uma vassoura de ponta cabeça atrás da porta.
     Eu, que tenho esse espírito terrível, segundo a minha mãe, e que nunca admiti mentiras, certa vez cheguei na sala e perguntei se já podia virar a vassoura. Na cara da professora. Acho que fiz de sacanagem.
     Capeta discreta, mas quem levava a fama de bad girl era a Bete, que escancarava.

      Voltemos à festa. Provavelmente a Bete estivesse lá sim, pois o Arcílio, meu tio, seu pai, era o grande fotógrafo. Não daqueles que pega uma maquininha e sai inventando. Não, naquele tempo nem existia isso. Ele era da pesada mesmo, era o fotógrafo do Brizola, e do carnaval de Porto Alegre, pra cima e pra baixo com Vicente Rao, o rei Momo, e chegou até a ir pelo governo a NY fazer curso, trazer técnicas, contatos, o escambau, e acabou fazendo todos os books da recém Petrobrás.
      E se o Arcílio estava lá, também o Ademar, que era o tipógrafo. Este, era um grande professor, antes atleta do Inter, chegou a diretor de uma das escolas da FEBEM, e todos o adoraram. O Ademar, que era o filho mais moço, era o braço direito de meu avô, o que o ajudava na tipografia.
       Se meu tio Carlos, o Padrinho, depois arrebanhou todas as revelações fotográficas da cidade, principalmente as da Casa Masson, aonde todos mandavam revelar, essa tipografia fazia praticamente todo o trabalho em Porto Alegre. A tipografia dos Porto Alegre. E, no caso da minha mãe, dali saíram sempre os diplomas e os certificados, convites, recibos, toda a papelada da escola.
      Certificados e diplomas eram o máximo, pois a minha própria mãe e meu tio Ademar escolhiam cuidadosamente todo o layout que estes teriam, com letras, cores, se haveria uma musa como a Columbia abençoando tudo em cima, o nome do aluno, ficava tudo lindo e perfeito.
      O único problema era que, como a minha mãe era a irmã, o meu tio meio que passava na sua frente aqueles clientes que não eram muito íntimos, e os certificados e diplomas não raro estavam ainda quentes da impressão ao passarem para as mãos dos alunos, enquanto minha mãe se escabelava até vê-los chegar.
     Quanto às fotos, o problema era que nem sempre eram entregues, e aquele evento, aniversário, casamento, formatura, muitas vezes ficava apenas na memória, o que não é verdade, mas chegavam às mãos dos interessados muitas vezes seis meses depois. Então, a gente sabia. Antes de tudo, tinha que se arrumar muita paciência.

     Não sei se foi dessa vez, mas creio que uma semana antes do evento, me lembro de todas as alunas e minha mãe em peregrinação pelo Menino Deus pedindo hortênsias. Por isso, penso que estávamos em dezembro ou janeiro. E o tal clube foi totalmente coberto com estas flores, com sua beleza e perfume.

    Também não sei se foi nesse dia que minha mãe trouxe a Dança para a sua escola, e de mão com o meu pai que me avisou da novidade, fiquei eletrizada ao descobri-la, entendendo imediatamente que era aquilo que eu queria ser. A bailarina dançava uma labareda, era a Dança do Fogo, a música acho que Prokofief, e sua roupa lembrava labaredas de fogo,sendo ela uma fogueira, a Marla, com L.
   
A Música

    Falei da beleza, mas nunca no sentido de hoje, e sim no dos gregos.
    Nasci numa casa e numa família que parecia viver dentro da Música. O meu avô era um grande músico: flautista, principalmente, mas manjava tudo. Além de ter tido cinema, de ter feito cinema, de ter levado filmes pelo Rio Grande, de ter tido livraria, um grupo musical, talvez uns quantos, tipografia, e de ter sido até goleiro. Mesmo depois de seu enfarte que o deixou paralisado de um lado e num desespero absoluto sem poder tocar, seus amigos músicos nos acordavam muitas vezes em serestas. Quem nunca viu, não sabe o que está perdendo. Uns quantos, uma dúzia mais ou menos de músicos, entre violinos, violões, cavaquinhos, flautas, bandolins, tocavam valsas e outras maravilhas. Suas lágrimas, as do avô, vendo-os, escorriam de pura beleza, e saudade. Os músicos, parece que brotavam entre as plantas do jardim de minha avó.
    Mas antes, quando meu avô caminhava, ele e meu pai tinham a mania de cantarem em dueto: Chão de estrelas, a sua preferida. E o gramofone, o toca-discos da época, mandava ver nos jazz e na música brasileira.

     Minha mãe inaugurou sua escola, o Instituto de Arte Musical, um ano antes de eu nascer, e a escola sempre foi em nossa casa. Antes de se espalhar em várias filiais pela cidade e até por cidades próximas. Desde pequena, nas tardes, pois nas manhãs a minha mãe era professora de música numa escola pública, e escolas públicas na época eram maravilhosas, a Música era matéria vivíssima. Nas tardes, a casa se transformava em escola. Havia aula de música não apenas na sala principal, como em salas ou quartos que não eram usados. Em geral havia pelo menos dois pianos e gaitas pra todo o lado. Partituras por tudo.
     Não é de estranhar que eu já aos dois ou três anos tirasse de ouvido até Chopin, e outros. Além disso, o rádio na época alimentava bastante o bom gosto musical. Não sei que fim levou a música boa, por falar nisso.

     A sensação que eu sempre tive é que o valor era medido naquela família pelo desempenho musical. Ser músico, música, era um compromisso que a gente traçava ao nascer. Nem me imaginava fazendo outra coisa.
    Claro que a Dança... mas a Dança é Música. Mesmo sem Música, digo a Música formal, pois o tempo todo o universo faz Música.
    Tanto que passei a infância e a juventude entre aulas de Música e Dança, e espetáculos. Como é que então a minha mãe queria que eu fosse outra coisa? Professora, bancária...
     E tanto que, depois de um tempo, cheguei à conclusão de que podia e devia unir as duas, em meu corpo, o instrumento definitivo. A Música, o som passava por ele e ele tocava. Eu já não conseguia mais segurar uma guitarra. Eu era ela.

      Hoje ouço jazz e busco raízes profundas em minha alma, a alma passada, que veio com essa maravilhosa família, e a alma nova que tá chegando, que me fará fazer parte de outro povo, um povo alegre, musical e dançante, como o nosso.

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