terça-feira, 22 de junho de 2010

Palhaçada (Miltinho e Elza, aí ao lado)

A Cozinha

O Cinema tinha três sócios, mas o idealizador era o Arcílio. Os outros eram o meu outro tio, o Padrinho, e um amigo dele, que, na verdade, acho que só entrou na sociedade por isso.
O Padrinho era o tio próspero; na época, em vias de. Nas festas em sua casa, quer dizer, nos aniversários (naquele tempo todo mundo comemorava cada aniversário), eu e a minha prima Bete – onipresente coadjuvante nessas histórias e filha do Arcílio –, como dois gatos espertos e vagabundos, perambulávamos em busca de novidades. Na sala, duas rodas separadas: homaredo de um lado e mulherio do outro. Palavras que soavam horrorosas aos meus jovens ouvidos, e ainda hoje, e que me davam vagamente uma idéia daquilo que justamente queriam nos proibir. Era pós-getulista, o Brizola a mil.
Então, como qualquer criança, oscilávamos entre esses dois grupos, pescando daqui e dali algo interessante, as roupas das mulheres, os salgadinhos e eventualmente uma roubadinha de cerveja no copo de um pai mais liberal, um passeio pelos outros cantos da casa, até a entrada do prédio, da qual às vezes vínhamos gritando anunciando a chegada de alguns convidados.
Meu tio era advogado e homem de negócios. Estava entrando no da fotografia, porém mais como comerciante mesmo, e tinha um fascínio de novo rico por tudo quanto era maquinária. As novidades chegavam ali primeiro, como o primeiro gravador, enorme, daqueles que comiam fita. Coisa inimaginável nos dias de hoje. Ah!... a pré-história da informática... E para receber todas as máquinas e artefatos, havia um quarto, que na nossa imaginação era meio secreto, já que, somando-se àqueles objetos, exalava cheiro de papel com formol e, em seus armários fechados, poderia esconder muito material proibido, leia-se sexual, na nossa cabeça, algum pecado de família, uma prancha de surf, que só apareceria anos depois e até um filho morto, pois havia boatos sobre isto ter acontecido.

As casas começavam a ser preparadas de véspera, com uma grande limpeza. Sendo a cera, uma das estrelas principais. Depois de passada, tinha que secar. Durante certo tempo então, todos que caminhassem por ali, teriam que fazê-lo na ponta dos pés. Um tempo depois, tudo liberado, ou melhor, muito melhor, como não havia enceradeira, era obrigatório “puxar o brilho” com um pano sob os pés. Ou sob as nossas bundas, que nos deliciávamos em subir num desses e escorregar e rodopiar pela sala, impulsionadas pelos próprios corpos de uma parede à outra.

Após essa fase, vinha a preparação da comida. Sobre a mesa da sala, da cozinha e sobre as prateleiras, e às vezes até pelas penteadeiras dos quartos, iam se empilhando os salgadinhos e os doces que o refri não dava conta. E a graça da cozinha na noite da festa, era que ali ficava o povo mais divertido, o mais simples. Os que adoravam beber, comer e contar algumas piadas impróprias. Mas que comparadas a qualquer coisa hoje, a gente ri mais do que das próprias. Além de, de vez em quando, baixarem a voz para contar algo engraçado e suspeito dos que estavam na sala. E só sacaneavam os que mereciam.
No comando do banquete, a minha Madrinha Lourdinha, pisciana que adorava uma cachacinha e tinha um humor de fazer inveja ao Ary Toledo. A Madrinha tinha uma amiga baiana, que casualmente era a cozinheira da minha tia, a dona da casa, e as duas ficavam horas inventando receitas e trocando figurinhas. A Nair, além daquele astral meio largado de baiano, que fica cutucando gaúcho, que aliás, todos ficam nos cutucando, fazia umas empadinhas de massa podre, que certamente fariam Babette se emocionar. Cerveja, a mais gelada, e também franqueada a nós com menos falsos moralismos, principalmente porque não bebíamos; um gole bastava para nos deixar enjoadas e voltar fervorosamente para o guaraná ou para a gasosa. Ali também, os outros criados das casas, os que moravam com seus patrões, ou algum ajudante do meu tio. Todos muito perspicazes, nada do embotamento e da falta de assunto que se vê hoje.
Cada casa tinha as suas manias, o seu dialeto. Nesta, pelo fato da minha tia ser originária da colônia alemã provavelmente, havia muitos picles sobre os armários mais altos. Picles eram engraçados, pareciam peixes boiando, e eu não entendia como poderia haver quem os comesse. Adultos eram esquisitos, gostavam de cada coisa!...

Do fogão, na festa, saiam direto os salgadinhos mais crocantes. A cozinha era um lugar quente de calor humano e divertida de sabores. Talvez, para mim, a semente do que viria a ser depois o bar. Espaço de confraternização, o ensaio da liberdade. A gula da vida.

Ao lado, o Miltinho e a Elza, que não me deixam mentir... sozinha, diria - sempre, e até hoje ecoa - a Madrinha.

4 comentários:

  1. Que delícia ler o que escreves, minha única e amada bruxa!...

    Esteja certa que estarei sempre por aqui...perto de tí...

    Bjs e paz...

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  2. Obrigada às duas! Lo,tava sumida! Que bom que apareceu! Marli, sempre gente fina. Bjos!

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  3. Prima Rose Porto Alegre
    Fiquei muito feliz com a oportunidade de ler sobre varios episodios e indiscutivel talento e espirito empreendedor de varios membros da nossa Familia Porto Alegre. Parabens e obrigado por compartilhar estes fatos e curiosidades muito interessantes.

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